sábado, 12 de março de 2011

Lentes de contato

Ser médico sempre fora motivo de orgulho. Para ele tratava-se de algo ainda maior: ele viera família humilde, do interior do estado. Ele, que conclui a faculdade com muito esforço, tinha um prazer ainda maior. Não por ser médico. Mas por ter conseguido se tornar um apesar das dificuldades. Ele era recém-formado  Apesar dos quarenta e poucos anos o darem um ar mais experiente. Ele estava estacionando seu Corcel na micro garagem de seu consultório. Ele não se queixava do consultório, afinal, seu tio Tenório tinha sido muito agradável ao lhe dar a casa que antes era sua oficina. Mas que a verdade seja dita: era um lugarzinho bem medíocre. Para quem aspirava trabalhar em um hospital no centro, era algo deplorável. Ele bateu a porta do carro e colocou seus óculos rapidamente para abrir a fechadura da porta principal. Seus óculos fundo de garrafa o faziam se sentir ridicularizado diante do povo. Ele  só os usava em situações extremas. Finalmente hoje ele tinha retirado suas lentes de contato na ótica do Lofredo. Era um dos poucos do bairro que já tinha lentes de contato. Sua vontade era agorinha mesmo ir ao jornal estampar nas capas que comprou uma lente de contato. Algo tão, raro, caro, nobre.
Quando ele abriu a porta, viu sua secretária virar a esquina na rua. Ela era uma mulher que já se mostrara confiável, apesar dos poucos dias de trabalho. Ele a esperou com cavalheirismo e ambos entraram juntos no pequeno consultório médico.
- Dia doutor!
- Bom dia, Suzana! Ótimo dia, advinha! Acabei de passar no Lofredo e peguei minhas lentes de contato. Adeus garrafão! - garrafão era como ele era apelidado pelos meninos maldosos da rua quando o viam com os óculos velhos.
- Que bom doutor!
Eles entraram. Enquanto Suzana organizava o pequeno balcão dedicado à secretária, o doutor foi ao banheiro experimentar suas novas lentes. Finalmente poderia trabalhar com mais classe!
Suzana ainda arrumava todos os blocos empilhados no lugar que eles tinham que estar quando o doutor a chamou desesperadamente do banheiro:
-SUZANA! SUZANA CORRE AQUI SUZANA!
Suzana largou os papéis e foi correndo acudir o médico no banheiro.
- Suzana que catástrofe, Suzana! Perdi minhas lentes! PERDI MINHAS TÃO ESPERADAS LENTES SUZANA! Ajude-me a procurar! Vá, vá!
Suzana e o médico agacharam que nem galinhas no chão ciscando milho, o doutor choramingando pelas lentes perdidas, pelo valor pago a prestação, pela vergonha que voltaria a passar com o garrafão.
Até que o primeiro cliente chegou o trabalho teve que ser parado:
- Ah doutor! A gente deve de ter pisado... O negócio é tão pequeno, parece um toucinho transparente! Não sei como isso pode mesmo ajudar na visão das pessoas. Eu hein!
O médico saiu do banheiro desolado. Atendeu o cliente desolado, passou o dia desolado. Suas primeiras lentes de contado haviam se perdido no banheiro. Que sorte ruim essa!
No meio do expediente ele teve que ir ao banheiro. Não que ele estivesse com esperanças de encontrar a lente. Apenas necessidades fisiológicas mesmo.
Foi uma lástima chegar ao banheiro e ter que tirar o garrafão para se ver no espelho. Quando o doutor olhou no espelho, seu peito inflou:
- SUZANA! SUZANA! VEM SUZANA VEM!
Suzana pensou que o doutor dessa vez tivesse com problemas com a descarga, porque aquela descarga nunca ia de primeira mesmo, tinha que ir uma mulher feito Suzana, com uma força bruta pra puxar a cordinha.
Ela foi e ao chegar no banheiro lá estava o doutor sorrindo apontando pra uma sujeirinha mínima no espelho:
- Achei Suzana! Eu tapado, cego! Ao invés de por as lentes em mim, coloquei no meu reflexo! AH SUZANA, ACHEI!
E lá estava a lente pregada no espelho na altura dos olhos do médico servindo de lente de aumento pro reflexo dele.
E o doutor então trabalhou satisfeito com suas lentes de contado no devido lugar.

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